Pode até parecer falta de criatividade, mas juro que não. O fato é que “pintou um clima” entre eu e essa crônica do Veríssimo. Enquanto falava ao telefone, lá estava ela, despretensiosa, estendida no chão, junto com inúmeras notícias de 2004, secando a água derramada. Esse curioso encontro de almas merece ser aqui documentado, então segue o texto:
Pintar um clima
Pobres dos tradutores. Fico pensando em como alguém traduziria a frase “pintou um clima” do brasileiro para qualquer outra língua. Nem o sentido da frase é traduzível sem perder em espírito e concisão. “Criou-se uma inesperada atmosfera de atração mútua” não é exatamente a mesma coisa. “Clima”, no caso, ainda dá para transportar com o sentido mais ou menos intacto, mas “pintar” como sinônimo de “aparecer” ou “acontecer” só com um vasto preâmbulo explicativo. Pobres tradutores.
E nós sabemos que a frase não significa apenas uma súbita alteração erótico-ambiental de expectativas entre duas ou mais pessoas. Tem também uma conotação fatalista, de algo acontecendo contra a vontade e o melhor juízo da gente, de algo que não deveria pintar, mas, que diabo, pinta. Um padre pode estar casando um homem e uma mulher e de repente o seu olhar engata com o da noiva e pronto, pinta um clima. O padre se perde na sua fala, gagueja, esquece o que tem que fazer. A noiva deixa cair a aliança. Quando os noivos vão se beijar, o padre grita “Não!”. Consternação na igreja. O padre atira longe os seus paramentos, pega a noiva pelo braço e os dois saem correndo da igreja. Ou então o clima se limita àquele roçar de olhares, o melhor juízo prevalece, a cerimônia chega ao fim e não pinta mais nada.
O clima pode pintar nos lugares e nos momentos mais inconvenientes. O Bituca escapa pela margem do campo com a bola junto aos pés. Passa por um, passa por dois. Vai cruzar na área. Vem o zagueiro Betão e entra de carrinho, chutando o Bituca e a bola juntos. Os dois se enroscam no chão. E pinta um clima! O que fazer? Os dois não são homossexuais. Aquilo nunca aconteceu com eles antes. Simplesmente pintou um clima. Que não dura muito, claro. O jogo precisa continuar. Por via das dúvidas, na cobrança de escanteio, quando o agarramento na grande área é comum, os dois ficam bem longe um do outro.
O clima não pode ser induzido. Perfumes, iluminação especial, poesia, pornografia, Miles Davis com surdina – nada cria um clima, quando o clima não quer pintar. Mas há notícias do clima pintando em situações extremas, entre pessoas perdidas na selva, umas com as outras ou com bichos e plantas e da frase “pintou um clima” sendo aceita como defesa em casos de adultério e sexo com mobília. Ninguém sabe exatamente o que é (não a gíria, mas o fenômeno) “pintar”, no caso. Pode ser uma reação eletroquímica, pode ser metafísica, ninguém sabe. Quando pinta, pinta. O mistério da atração humana permanecerá para sempre um mistério. E intraduzível.
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** Discordo com o Veríssimo apenas em um ponto. Para mim, esse “clima” não é necessariamente uma atração sexual, pode ser apenas um encontro de almas, a descoberta de uma pessoa que você passe a ver como um possível companheiro.